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02 outubro 2006

Capítulo 01 – Sobre os envolvidos

1.1. Miniatura do Universo

Nasceu Francisco Alemberg de Souza Lima.
Francisco por promessa da tia que, por medo que o bebê fraquinho não vingasse, prometeu ao santo o mesmo nome. Só ela o chama assim.
Alemberg, nome do conde da novela que a mãe assistia.
É conhecido mesmo por Alemberg Quindins.
Mas de onde vem esse Quindins?

Quindins foi uma banda que a gente fez de música regional, e aí as pessoas depois ficaram me chamando de Quindins. O povo só chama de Quindins, tenho que gostar.

Tomou contato com as lendas e com o imaginário de Nova Olinda por meio de uma cabocla descendente dos índios Kariri, que lhe contava a história dos índios. Começou a criar imagens e sons a partir delas.

A partir daí, não parou mais.
Aos 9 anos, montou uma editora onde publicava suas histórias em quadrinhos. Já fez cinema, e toda a divulgação dele, para os moradores de Tocantins, onde morava na época. E ainda vendia o negócio nos seus quadrinhos: “Seja sócio da editora”.
O sócio, no caso, recebia carteirinha personalizada, desenhada pelo próprio Quindins, e tinha o direito de pagar meia entrada no cinema. A entrada? 10 palitos de fósforos, meia, cinco palitos. Ele se orgulhava de “sustentar” a cozinha de casa.
Conseguiu adesão de todos os meninos da cidade, que não tinham o que fazer naquele lugar que nem no mapa constava.
A professora lhes ensinava: “Olha, a gente mora mais ou menos aqui.”
Outra batalha que Quindins ganhou: conseguiu, posteriormente, colocar Nova Olinda no mapa.

Paralelo a isso ainda tinha uma banda, a Banda de Lata, que tocava nos desfiles de misses das meninas. E jogava bola. Ganharam um campo para jogar, com a condição de que o mantivessem limpo. No meio do campo havia um pé de Pequi, fruto típico do cerrado.
Para divulgar os jogos do campeonato no Campo do Pé de Pequi, também criou a revista Placar. Todas desenhadas à mão, com pôster personalizado, afinal, não havia xerox.
Toda essa obstinação e menos de 18 anos.
Quando chegou a essa idade, decidiu conhecer o mundo e partiu para a Marinha. Não saiu de dentro do navio. Desapontado, voltou para a cidade do Crato e começou a resgatar as lendas que ouvira de criança.
Casou-se com Rosiane, sua companheira até hoje. Saíram pesquisando tudo sobre o vale do Cariri, tentando resgatar musicalmente a pré-história do local. Compuseram músicas a partir das lendas, conversas e instrumentos rústicos regionais.
Para se manter, vendiam artesanato. Começaram a adquirir cada vez mais peças, doadas pelos moradores que não sabiam o valor das pedras do lugar.

Os agricultores quando iam fazer o plantio, muitas vezes batiam, achavam uma pedra, um
lítio, e aí então muitas vezes colocavam como peso para escorar a porta. Depois a gente foi resgatando isso, com a intenção de proteger aquele acervo. E foi fazendo uma catalogação das cavernas com pinturas rupestres. Esse acervo começou a ser visitado lá em casa por universitários. Eu peguei essa casa, que era a casa do meu avô e que deu origem à cidade de Nova Olinda.

E que, mais tarde, deu origem à Fundação Casa Grande.


1.2. Casa de sonhos

Então eu resolvi fazer o seguinte: uma casa onde resgatasse a mitologia e arqueologia desse povo. Agora, o interessante é o seguinte: eu me lembrava de um indiozinho de madeira, estava em meu subconsciente. Eu era muito pequeno, devia ter uns cinco anos, três anos. Como se fosse um sonho, mas eu tinha certeza de que aquilo aconteceu mesmo. Mas aí um dia, eu passando na casa dessa pessoa, eu perguntei. Ela disse: “sim, você vinha aqui quando era criança, o indiozinho está aqui.” E foi lá no baú e tirou. Hoje esse indiozinho está na entrada da Casa Grande. A gente chamou ele de Cariuzinho, que é dos Cariú, que era da tribo dos Kariri, família Cariú.*
* sobre as lendas que a cabocla lhe contava quando criança

Nova Olinda começou em um rancho onde Garcia D’Avilla aportou para começar o processo de sesmarias no Brasil. Lá começou o ciclo do couro, o início do comércio do gado. No lugar em que passavam, deixavam aqueles ranchos de comboeiros. Ali surgiu a tribo dos Cariú, da família Cariri. D'Avilla construiu uma tapera, que hoje é a Casa Grande. O avô de Quindins a comprou, na época. Em 1992, o próprio Quindins resolveu transferir pra lá todo o acervo que já havia resguardado.
O indiozinho virou personagem das histórias em quadrinhos que os meninos de Quindins escrevem. Ele é um ser encantado que leva os meninos no tempo para conhecer a “época das lendas”.
A escola funciona de segunda a domingo, das 8 às 17 horas, e oferece atividades extracurriculares a crianças e jovens entre 3 e 20 anos. Para participar, é obrigatório estar matriculado no ensino formal. O espaço conta com uma videoteca com 500 fitas sobre história do cinema, documentários educativos, desenhos e filmes, uma brinquedoteca e uma biblioteca com 1.500 títulos, aberta à comunidade. As crianças de 3 a 9 anos passam a tarde na Escolinha de Iniciação à Casa Grande, onde participam de atividades lúdicas. Já os mais velhos fazem acompanhamento pedagógico ou um curso de preparação ao vestibular. Todos os participantes passam pelos laboratórios de comunicação da escola. "Neles, as crianças aprendem fazendo, e os mais velhos ensinam os mais jovens", afirma Rosiane Limaverde.

Os 4 programas na fundação:

1. Memória
- resgate da mitologia e arqueologia/ museu
Alemberg e a esposa, Rosiane Limaverde, durante anos pesquisaram a música e a geografia da região, reunindo objetos, mitos e lendas da Chapada do Araripe e do Vale do Cariri, onde fica Nova Olinda. A região é rica em fósseis, objetos e pinturas rupestres. A atenção despertada por esse inusitado museu do sertanejo "pré histórico" foi o estopim para a criação da Escola de Comunicação Meninada do Sertão.
- proteção dos sítios arqueológicos da região, instruindo as pessoas em como preservar.
As crianças estudam as lendas e os mitos da região, assim como primeiras formas de expressão gráfica do homem. Muitas delas se tornam recepcionistas do museu, repassando aos visitantes tudo o que aprenderam.


2. Comunicação
- rádio – em parceria com a UNICEF, capacitam crianças para a elaboração de programas de rádio. Hoje o programa já está em Angola e em Moçambique. São programas DE crianças PARA crianças.
A idéia é fazer com que as crianças e os jovens tenham contato com vários estilos de música e se tornem locutores, sonoplastas, produtores e repórteres.
Mêires Moreira começou na rádio aos 10 anos fazendo o programa infantil Planeta Criança. Hoje, aos 21 anos, é produtora e locutora do programa diário Papo Cabeça. Mêires foi convidada pela UNESCO a fazer parte de um Grupo de Trabalho Jovem sobre AIDS. O convite gerou viagens e reuniões com outros jovens brasileiros em várias capitais.
Todos os dias Valeska Cordeiro, 13 anos, comanda o programa infantil da rádio, o Submarino Amarelo, no qual "embarcam" cerca de 20 crianças que estão aprendendo a arte de fazer rádio para outras crianças, diariamente, das 13 às 14 horas. É ela quem separa as músicas e, conversando com os demais colegas, decide qual será o tema do dia: coisas saudáveis que a meninada pode e deve fazer, como o quanto é bom ir à escola para aprender a gostar de ler.
Outras crianças também têm seus programas na rádio que começou em 1995, ao vivo, com apenas um transmissor e 4 auto-falantes (material abandonado de uma igreja), transmitido somente nos finais de semana. Em 1998, foi reconhecida pela ANATEL como rádio comunitária e sua programação passou a ser diária (das 5 horas da manhã às 10 horas da
noite).

Quando a gente começou a nossa rádio FM, eram quatro alto-falantes em cima da escola. Fazíamos uma programação pra comunidade. Então o Unicef se interessou e doou uma parcela de dinheiro pra gente ampliar nosso sistema de alto falantes. Espalhamos mais cinco alto-falantes pela cidade. Depois o Unicef viu que estava tendo comunicação com a cidade e aí a nossa rádio passou a ser FM.
Miguel Barros Filho - Gerente do Museu / estudante

O objetivo da rádio agora é alcançar o status de educativa, podendo operar com maior alcance, chegando a toda região do Cariri – Crato, Juazeiro, Assaré, entre outras cidades.


- TV Casa Grande
No início, o museu da Fundação começou a atrair a imprensa. Vinha repórter de rádio, de TV. A criançada ficou louca com aquilo! A mídia parecia um disco voador que tinha baixado na cidade, a gente nunca tinha visto uma câmera na vida. Aí as crianças chegaram no Alemberg e disseram que queriam aprender a filmar. Por uma lei estadual de incentivo, o UNICEF cedeu a primeira câmera VHS pra gente. Foi então que começamos a brincar de fazer TV, vídeo. Eu sempre fui meio curioso, imagine um peixe que passa a vida no aquário e de repente vê o mar...
João Paulo Maroto, 21 anos, gerente da TV Casa Grande

É a primeira tv produzida integralmente por crianças. Funciona hoje dentro da Fundação e conta com uma equipe de quatro pessoas entre 18 e 21 anos, além de três aprendizes com 12 e 13 anos. Em um estúdio pintado de azul e uma salinha que serve como ilha de edição, as crianças aprendem a manipular a DV-CAM, uma câmera digital de vídeo, um aparelho DAT para captação digital de áudio e também um software de edição. No início, o alcance era de apenas 5 quilômetros para testar a qualidade e abrangência da transmissão. Em 2001, a ANATEL acabou com a brincadeira e lacrou os transmissores. Agora, os programas produzidos são gravados e exibidos no teatro da Fundação, até sair a sonhada licença para operar como TV comunitária.

- Editora – com jornal e revista mensais.
Sansão, Boin, Cacá e Margarida são alguns dos personagens das histórias em quadrinhos criadas pelas crianças. Na Casa Grande Editora já foram editadas 14 revistinhas. Um jornalzinho quinzenal é distribuído aos visitantes da fundação e aos patrocinadores. Nesse espaço são formados diagramadores, roteiristas, cartunistas, programadores visuais e designers gráficos.

3. Arte
- Cinema – criação de filmes e estudo. Têm a TV Produz, programetes com depoimentos que passam antes de cada sessão de cinema, foi batizada de Sem canal, por conta do corte da ANATEL. Tem qualidade profissional na ilha e produção de DVDs.
Além disso a Fundação possui um cineclube, onde o povo conhece filmes e curta-metragens brasileiros e produções da meninada. Eles encontraram sua própria linguagem e estética para filmar, filtrando o que assistem na tv e vêem na telinha. O cineclube é uma parceria da Petrobrás.
A partir de uma certa idade, também apuram o senso estético da meninada as imagens de mestres como Tarkovsky, Bergman, Antonioni, Pasolini e Hitchcock, em sessões lotadas com até 200 pessoas.

- Música – a iniciação à música é feita pela Bandinha de Lata. "Os instrumentos são de lata e madeira, não produzem som; as crianças é que fazem o som com a boca. Nessa fase, estão iniciando a familiarização com o ritmo", afirma Rosiane.
Em 2000, durante dois meses a banda participou do espetáculo Mãe Gentil, de Ivaldo Bertazzo, com Zeca Baleiro, no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Os mais velhos integram a banda de pop e rock Os Meninos da Casa Grande e, em parceria com Rosiane e Alemberg, apresentam o show A Lenda, no qual relatam a história dos cariris. No espaço, há uma oficina de construção de instrumentos musicais de percussão. Os alunos estudam também repertório musical, estilos, ritmos e compositores.
Existe também a banda de música instrumental, que mistura jazz com ritmos locais, nordestinos.

- Artes Cênicas - São realizadas oficinas, espetáculos e teatro de bonecos. Atualmente está sendo construído no terreno da fundação um teatro com capacidade para 150 pessoas, financiado pelo governo do Ceará.


4. Turismo Solidário
A ideia de captar turismo nasceu em cima de uma demanda. A Casa Grande recebe 3 mil visitantes por mês, vindos de todos os lugares. Estudantes de outros países, pessoas interessadas em pesquisas.
Foram criadas, então, as pousadas domiciliares, onde os moradores (e pais dos jovens que frequentam a fundação) são instruídos a construir mais um quarto com banheiro para que os visitantes tenham onde ficar e que seja acessível, tanto do ponto de vista turístico quanto ecônomico.
Os pais, muitas vezes, são também guias turísticos e/ou motoristas.
É cobrado um valor de 40 reais para que o turista tenha acomodação e todas as refeições. Desse valor, 80% é destinado à reposição do material gasto e investimentos na própria pousada. 10% vai para a manutenção da cooperativa (de pais, para os trazerem como aliados para a fundação) e 10% para um fundo de educação (pagamento do transporte a todos os estudantes que passarem no vestibular, já que a Universidade, a URCA, fica em Crato, a 42 km). São oferecidos também cursos de hotelaria e gerenciamento de pequenos negócios voltados para o turismo.

De modo geral, a escola de comunicação de Quindins tem como objetivo abrir a visão das crianças que a frequentam e diversificar seu modo de ver as coisas.
Um detalhe curioso nisso tudo é que a Casa Grande não possui site. Até há pouco tempo não possuíam internet também. Adquiriam há pouco dois pontos de internet, um pelo MINC, com o Ponto de Cultura, e outro pelo Criança Esperança,hes doou um laboratório.
Para Quindins, o importante é a origem e o conteúdo. Coisas que ele mantém vivas nas crianças, já que a fundação é toda “comandada” por crianças e jovens.
Boa parte daquilo que a gente sabe, na realidade, não serve muito para a sobrevivência da gente.
Esse é o espírito da Casa Grande, de constar no mapa, de querer saber qual a importância de estar no mapa de seu país. Da criança ser incluída socialmente como pessoa. E acima de tudo, formar comunicadores, para que eles descubram o mundo.

Eu digo: se tudo isso aqui não der certo para os outros, deu para mim.
Alemberg Quindins